Numa entrevista em tom de desabafo, a arqueóloga Niède Guidon, que dedicou décadas de
trabalho para revelar que o Piauí está no contexto histórico da humanidade através da Serra da Capivara, falou ao 180 Graus sobre a importância do parque e os desafios que enfrentou ao longo dos anos para mantê-lo funcionando.
A entrevista foi realizada na sua residência, em São Raimundo Nonato, e concedida ao editor-chefe do site, Jhone Sousa, onde ela afirmou que é ‘hora de descansar’. Niède não esconde sua revolta com o descaso do poder público com a infraestrutura da região que dificulta a chegada de turistas.
em curiosidade: por que o Piauí? Porque a Serra da Capivara?
Em 1947 eu era arqueóloga na Universidade de São Paulo e fiz uma exposição sobre as pinturas rupestre do Brasil. Na ocasião, na época, só se conheciam as de Minas Gerais. Um senhor que foi visitar pediu para falar com o responsável e me chamaram. Ele disse que perto da sua cidade, no Piauí, também tinham esses desenhos de índios, me mostrou umas fotos e eu vi que eram completamente diferentes das minhas e pedi para ele dizer qual era a cidade e como fazia para chegar. Ele me deu todos os dados e alguns meses depois, que eu tinha férias, peguei meu carro e fui. Mas tinha chovido muito e uma ponte no [rio] São Francisco caiu e eu não pude passar. Depois fui embora para a França, mas sempre ficou aquilo na minha cabeça. Quando voltei para o Brasil, em 1950, vim até aqui e vi essas pinturas, falei com as pessoas da cidade, eles me mostraram essas pinturas, fiquei uns dois três dias e vi uma grande quantidade de sítios. Eu fotografei e com essas fotografias consegui na França criar uma missão, Missão Francesa do Piauí, que funciona até hoje, financiada pelo governo francês. Eu dava aula em Paris e nas férias vinha com meus alunos fazer pesquisas aqui. Foi assim que fomos descobrindo cada vez mais coisas.
Hoje o parque tem uma estrutura muito boa para receber os turistas, mas isso não foi fácil, conseguir manter o parque…
Nós conseguimos essa estrutura porque, quando o parque foi declarado patrimônio da humanidade, o governo brasileiro pediu à França para me emprestar para fazer o projeto para proteção, que é obrigação do Governo Federal. Sai de Paris e vim morar em São Raimundo Nonato para fazer esse projeto. Fomos A Washington, convidamos o presidente do Banco Interamericano [de Desenvolvimento] Enrique Iglesias, a vir visitar a região. Ele veio, ficou uma semana, achou maravilhoso, mandou um técnico do banco que ficou um mês aqui, que fez um relatório dizendo que a agricultura e a criação nunca daria resultados econômicos, porque o solo é muito salgado, porque foi mar, areia, pedras e tem os problemas da seca, mas tinha um potencial turístico imenso e devia se investir no turismo. O Enrique Iglesias ficou tão impressionado que o banco fez uma doação de U$ 1,3 milhão e foi com esse dinheiro que fizemos a infraestrutura. Depois para manter, foi aquela coisa, antigamente era mais fácil, porque, por exemplo, a Petrobras nos fazia doações todos os anos e tinha a compensação ambiental, as empresas cujo trabalho prejudicam o meio ambiente eram obrigadas a fazer doações de uma parte do lucro para as instituições que protegiam o meio ambiente. Muitas delas nos escolhiam, inclusive a Vale do Rio Doce nos dava todo ano muitos recursos. Com isso pudemos manter o parque, tínhamos 230 funcionários cuidando nas 28 guaritas no entorno do parque, todo um trabalho perfeito, fizemos as estradas, fizemos tudo, mas depois, quando o Lula assumiu, ele mudou a lei da compensação ambiental, ele mudou, não era mais para esse fundo ir para as entidades que cuidavam do meio ambiente, ele criou o Fundo da Compensação Ambiental, lá em Brasília, então o dinheiro vai para lá e é do governo, como todo dinheiro do governo, cai em Brasília e só sai na Suíça, nunca mais vimos esse dinheiro. A Petrobras começou a ir para trás, faliu, ficou muito mal, de maneira que nós tivemos problemas muito graves, esses anos todos tivemos que reduzir a autonomia, hoje temos 40 funcionários só, mas na pior fase tinha 5, antes eram 230, chegamos a 5, e hoje estamos em 40.
Hoje o parque tem condições de se manter, de onde vêm os recursos principais…
Os recursos principais são uma obrigação do Governo Federal, porque é um patrimônio da humanidade. Visitei vários patrimônios no mundo, para ver como eram estruturados e todos que visitei, inclusive na África do Sul, recebem milhões de turistas por ano, eles se mantêm com o dinheiro que o turismo trás, aqui não, porque para começar, não tinha aeroporto. Fizeram um aeroporto que custou muito caro, mas não tem um posto de combustível, se você vem no seu avião, desce aqui e depois não pode mais sair. Não tem estrutura, não tem hotéis. Tem que ter hotéis de 5, 6 estrelas até, mas não tem, os hotéis não são bons, não tem possibilidade de ter o turismo. Chegar aqui é muito difícil, tem que vir de Petrolina até aqui por uma estrada que parcialmente não foi nem asfaltada, muito, muito difícil.
Que participação o governo estadual tem para manutenção do parque?
O Governo Estadual já fez doações nos momentos de crise, permitiram pagar uma parte do pessoal…
Mas é regular ou não, apenas nos momentos de crise…
Não, não é regular, quando a gente faz um convênio, tem algum problema, então o Governo ajuda a resolver.
O que representa o Museu da Natureza para a história da Serra da Capivara?
Eu acho que não existe, já me disseram, que não existe outro museu igual no Brasil. Agora já estamos fazendo o projeto para atualizar o Museu do Homem [Americano], porque ele foi atualizado há 10 anos e depois disso teve novas descobertas, coisas muito importantes e nós queremos também colocar na exposição. Não existe coisa igual no Brasil.
A maioria dos piauienses não conhecem o parque, não conhecem os museus, mas há muitos estrangeiros que vêm aqui o ano todo…
Tem, muita gente, o Museu na Natureza agora, nós recebemos uma quantidade muito grande de turistas, houve dias que teve 400 turistas e em uma semana 5 mil, uma coisa muito importante, que o Governo do Piauí devia entender que isso interessa o Piauí, que traz dinheiro para cá.
Se o Governo tivesse a intenção de fazer algo para melhorar a estrutura do parque, melhorar a entrada de turistas, qual seria sua sugestão de fazer imediatamente?
A estrutura do parque não compete a ele, a estrutura está muito bem, é só uma questão de manutenção. O que o Governo do Piauí deveria fazer ela a questão de incentivar a construção de hotéis de 5, 6 estrelas, e desenvolver o aeroporto. Fizeram um aeroporto internacional, mas com uma pista tão pequena que não descia avião grande. Tivemos que brigar para fazer mais 100 metros de pista, mas foi feita de uma maneira, com esse asfalto fininho, já está cheio de buracos. Esse é o problema, não tem um aeroporto internacional.
E para o futuro, a senhora dedicou uma vida à Serra da Capivara e eu li que após inaugurar o Museu da Natureza, a senhora iria mais ficar aqui…
Estou completando 86 anos e mereço descansar. Terminando o museu, nós estamos aqui projetando esse daqui [Museu do Homem Americano], mas não sou eu que vou fazer, mas de toda maneira acho que agora já chegou, está na hora de descansar. Já estou aposentada pela França faz muito tempo, faz mais de 40 anos que estou aposentada pela França.
Mas e o trabalho na Serra..
O trabalho na Serra tem as pessoas que trabalharam comigo, tem a Univasf, tem curso de arqueologia e Ciências da Natureza, que eles podem muito bem cuidar do parque.
A senhora fica no Brasil, no Piauí?
Não sei, vou viajar.
E para as futuras gerações, como pode ser feito um trabalho de conscientização para que as crianças hoje que estão na escola possam dar importância a este patrimônio?
Existem escolas de São Paulo que trazem todos os anos os alunos, passam uma semana aqui, têm cursos sobre a Serra da Capivara, é isso que precisa, educação, ensinar o que é a Serra da Capivara
Que recado a senhora deixa para os piauienses, especialmente para o poder público, para que haja mais interesse em preservar nosso patrimônio, não só o histórico, mas todas as riquezas do estado?
O Piauí na pré-história era de primeiro mundo, está na hora de voltar a ser primeiro mundo. Tem tudo para isso, basta simplesmente aproveitar isso, ver o que outros países que têm patrimônios da humanidade fazem e realmente desenvolver esta região.
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Fonte: 180 Graus